sábado, 27 de novembro de 2010

Rio de Janeiro: a Cidade Maravilhosa

Pra que (m) serve a tua paz?

Alexandre Haubrich, jornalista, editor do blog Jornalismo B
(www.jornalismob.wordpress.com)

Homens armados atiram para todos os lados em uma favela carioca. Fortemente armados. O estrondo dos tiros ecoa junto com os zunidos das balas por todo o morro. Pessoas caem baleadas. Algumas estão apenas feridas, outras estão mortas. Entre os milhares de barracos de madeira rodeados por terra, esgoto e sangue, há um em que uma menina de quatorze anos está sentada ao computador, como você que está lendo esse texto está agora. Ali ela tenta concentrar-se em uma realidade diferente, tenta ignorar os tiros e zunidos e gritos e urros e mortes. Ela está lendo um recado que recebeu no Orkut, ela está vendo um vídeo engraçado no Youtube, ela está lendo este mesmo blog que você agora lê. De repente ela não está mais. Das suas costas escorre sangue, seu pai grita, sua mãe chora em desespero. A menina de 14 anos que brincava no computador foi morta por uma bala que saiu da arma de um policial, saiu da arma do Estado que deveria protegê-la.

Uma história muito parecida com essa aconteceu essa semana no Rio de Janeiro, e passou quase batida em meio ao fervor midiático e popular com uma guerra tão próxima, olha que maravilha, agora o Brasil também tem guerra, podemos curtir mais esse espetáculo do conforto de nossos lares e imaginar quase em gozo que é longe o suficiente para nos mantermos protegidos e perto o suficiente para nos dar prazer.
Tropa de Elite 3, agora ao vivo.

Violência do tráfico x violência do Estado

Durante décadas o Estado brasileiro promoveu ações policiais em favelas. O tráfico de drogas e armas continua, a “violência” que assusta a classe média continua, nada se resolve. Além disso, a violência social está devidamente estabelecida. Os moradores das favelas cariocas, como os moradores de todas as periferias das grandes e médias cidades brasileiras, são violentados dia e noite por criminosos comuns ou institucionalizados. O Estado violenta os pobres a cada instante. A violência do não acesso à educação, à cultura, à saúde. A violência do não acesso ao respeito, à solidariedade, ao carinho. A violência do não acesso à cidade, do preconceito, da exclusão, do nojo das elites que não tomariam um copo d’água servido em um barraco. A violência que vemos pela
TV é só a mais visível daqui da superfície. Como as revoluções, a violência contra os pobres não é televisionada.

A atual ação policial em alguns morros do Rio de Janeiro tem sido uma demonstração de força e truculência, e uma demonstração de como o Estado lida com a pobreza. Sem distinguir criminosos de não-criminosos, a polícia entra para matar quem passar pelo caminho. Revira casas que nada têm a ver com o tráfico, desrespeita os moradores como se estes não tivessem os mesmos direitos que qualquer um. Invadiria dessa forma casas de classe média? Não creio. Muitos dos chefões do tráfico de drogas e armas não moram nas favelas, mas em coberturas das zonas nobres do Rio de Janeiro. Por que essas coberturas não são invadidas da mesma forma? Os traficantes ocupam áreas da cidade e as transformam em suas propriedades. Milionários fazem o mesmo em áreas paradisíacas em diversas cidades brasileiras. Por que as mansões que estes constroem não são invadidas e devolvidas ao Estado? O problema não são os policiais, é importante explicar. É a estrutura policial, a instituição. A mentalidade, vendida pela mídia e comprada pela sociedade em quase todas as suas instâncias, remete ao tempo da escravidão negra: pobre não tem direitos, pobre não é gente. A polícia também compra essa ideia.

Além dos inocentes assassinados pela polícia, além dos inocentes feridos ou simplesmente desrespeitados em seus direitos, há os criminosos. Não parece, mas o Brasil ainda tem leis e ainda tem Judiciário. Que direito a polícia tem de travestir-se de juiz e executar criminosos a seu bel prazer? Ainda que, em sua cega ânsia vingativa, grande parcela da conservadora e ignorante sociedade brasileira defenda a pena de morte, este recurso não é permitido no Brasil. Se em um julgamento não se pode determinar a execução de um criminoso, por mais grave que seja seu crime, como pode ser aceito que a polícia mate traficantes como patos de festa junina? A limpeza social que está sendo posta em prática diariamente e, agora, de forma intensiva, não pode ser permitida. Além disso, a noção de “guerra” aplicada ao momento cria um clima de confronto exagerado, que faz crescer ainda mais a violência de lado a lado e reduz a preocupação com os direitos humanos e com o respeito à vida.

Fique claro: não estou defendendo os traficantes, que oprimem as pessoas através das armas, executam quando entendem que devem, e, mesmo em ações que “ajudam a comunidade”, desempenham um papel que não é deles. Exercem o poder através das armas em um nível de coerção muito maior do que o Estado atual. Porém, de nada adianta, através de seu caráter de detentor do monopólio da violência legítima, o Estado agir sobre os criminosos e sobre as comunidades da mesma forma. É claro também que, em uma situação estabelecida de conflito armado, os policiais precisam se defender, precisam atirar. Mas a atitude inicial do Estado, ali representado pela polícia, frente aos criminosos, não pode ser de confronto e busca pela morte do outro. Deve-se combater o crime. Mas combater o crime não é matar gente. Isso é cometer novos crimes. Combater o crime é buscar mudanças na sociedade.

A bala de prata contra a violência é a paz

Gostaria de ver o Estado brasileiro invadir as favelas cariocas e todos os grotões de pobreza armado com livros, estetoscópios e computadores. Essas são as balas de prata contra a violência não institucional. Essa violência é lamentada sem que se perceba onde nasce. Com a sociedade capitalista exclusiva, antidemocrática e preconceituosa por natureza, não há escapatória. A publicidade exalta o consumo, quem não pode consumir está automaticamente excluído. E esse mesmo que não pode consumir já mora longe das regiões centrais das grandes cidades, está desempregado ou subempregado, sofre na pele o preconceito de classe, monstruosamente presente na sociedade brasileira. Se mora na favela, não é por acaso. Não há lugar no campo por causa dos latifúndios que excluem, não há lugar na cidade por causa da especulação imobiliária, então o pobre vai parar nas periferias, isolado, e passa a ser visto com ainda mais preconceito, e o ciclo se renova. A política costumeira de isolar a pobreza não funciona. Enquanto a pobreza for mantida apartada da cidade média, não será enxergada nem eliminada, e a violência seguirá nascendo todos os dias.

A curto prazo é preciso pensar atitudes concretas básicas. A ocupação policial e a prisão dos traficantes é, sim, necessária, mas deve ser feita com preocupação com os direitos humanos básicos, em todos os sentidos, desde a atitude com os moradores até as ações frente aos criminosos. Mas só isso não adianta. A melhoria das condições de vida dessas pessoas é a única forma de impedir que a violência se prolifere, em suas mais diversas esferas. Para combater o tráfico de drogas e armas, a legalização de todas as drogas é um caminho inicial fundamental. Legalização não é liberação, leia bem. O Estado precisa deter o monopólio das drogas e controlar, dessa forma, seu consumo. Com as drogas legalizadas, o crime organizado que domina os morros do Rio de Janeiro perde sua principal fonte de financiamento.

Para resolver o problema em definitivo e em sua esfera mais ampla, porém, é preciso uma mudança profunda. Econômica, política, cultural e humana. É preciso fazer nascer um novo homem, que veja beleza na solidariedade, na igualdade entre diferentes, no respeito a essas diferenças. É preciso fazer nascer uma nova sociedade, com essas mesmas características do novo homem, começando-se por revoluções educacional e na saúde, por reformas agrária e urbana radicais, por redistribuição radical de renda. É dessa forma que o Estado pode atuar contra a violência. O resto é apenas reacomodação, solução apenas aparente, casual. A verdadeira solução é, como o verdadeiro problema, estrutural. É difícil? Muito. Mas as verdadeiras soluções não costumam ser as mais fáceis. Uma das poucas certezas que tenho é que absolutamente todas as ações e reações sociais são possíveis. A mudança precisa ser muito profunda, uma mudança sistêmica. Sem isso, temos pouco mais que nada. A paz não pode ser apenas aparente nem para alguns. Ela precisa ser profunda, permanente, e para todos.